Shun agora é mulher? O machismo por trás da ~mudança feminista~

Em um painel realizado ontem (08) na CCXP, a Netflix exibiu para o público pela primeira vez um trailer da nova série animada de Cavaleiros do Zodíaco, totalmente em computação gráfica. Com cenas emocionantes feitas com a mesma tecnologia e afinco dos filmes tridimensionais da Barbie, vimos rostos e vozes conhecidas. O quase sessentão dublador Élcio Sodré soltou o seu milionésimo “Coleraaaaa do Dragão” enquanto os outros dubladores de vozes bem avançadas continuam dublando rapazes de 13 anos de idade. Até que apareceu Shun, e ouvimos a voz de uma adolescente. Teria Ulisses Bezerra, o clássico dublador do Shun, achado melhor não participar dessa palhaçada? Na verdade, ele não estará na produção porque a equipe da Netflix transformou Shun, o cavaleiro de Andrômeda, em SHAUN, UMA CAVALEIRA MULHER.

Estamos em 2018 e todos os requentamentos de clássicos vieram com mudanças que incomodaram suas respectivas fanbases. A She-Ra não é mais sexualizada, o Popeye planta espinafre orgânico e Cebolinha não picha mais as paredes do bairro do Limoeiro com bullying contra sua vizinha. Séries antigas não são mais adequadas ao pensamento atual, e isso tá longe de ser uma conspiração de Pabllo Vittar e a esquerdista Rede Globo: os próprios contos infantis dos irmãos Grimm foram mudados várias vezes com o passar dos séculos para se adequarem às novas gerações que provavelmente se traumatizariam com as irmãs da Cinderela cortando um pedaço do pé para caber no sapatinho do príncipe.

E aí chegamos em Cavaleiros do Zodíaco, uma série que é o puro creme dos shonens brucutus dos anos 80. Porém, em meio aos cinco adolescentes adultizados com personalidade rasa e semelhante, havia alguém diferente: o Shun. Veja bem, Shiryu, Hyoga e Seiya são todos muito parecidos (o anime pelo menos deixou o Seiya mais “brincalhão”, diferenciando do template de heroi genérico do mangá), mas Shun se destacava por ser… sensível. Não gostava de lutar, mesmo sendo muito forte. Somando isso à armadura rosa e o pensamento machista da sociedade brasileira (e por que não no resto do mundo?), Shun logo ganhou apelidos maldosos.

Mesmo sendo o personagem melhor desenvolvido da história, era um pouco “proibido” gostar do Shun na época da exibição da série nos anos 90, e falo isso com conhecimento de causa! O Shun era o personagem que sobrava na hora de escolher quem iria ser quem. Até mesmo os bonecos do Shun eram complicados de se adquirir: lembro de ouvir lojistas falando como nem encomendavam ele, pois não era venda certa. Décadas depois, esse mesmo preconceito com o personagem se mantém (sim, estou usando o verbo no presente), afinal COINCIDENTEMENTE a coleção de Cavaleiros do Zodíaco da C&A não tinha a camiseta do Shun POR ALGUMA RAZÃO MISTERIOSA QUE VAMOS FINGIR NÃO SABER.

Olhando para os olhos mercadológicos, o Shun é um problema. Não é um personagem marketeável, lançavam linhas de produtos sem ele e sua fama sempre esteve associada à homossexualidade (mesmo o personagem sendo claramente hétero). Ao mesmo tempo, mercadologicamente a série é um fracasso com mulheres pela completa ausência de personagens relevantes desse gênero. E não, a Saori sendo sequestrada toda santa vez não vale como personagem relevante, ela é uma donzela em apuros, um clichê antiquado. Estamos no século XXI e as séries precisam de personagens fortes femininas como forma justa de representatividade, e de alguma forma os produtores da série juntaram esses dois problemas numa mesma solução porca.

Eugene Son, o roteirista da nova série, assumiu no Twitter que ele foi o responsável pela mudança de sexo do personagem. “Hoje o mundo mudou. Homens e mulheres trabalham lado a lado. Estamos já acostumados a isso. Certo ou errado, as pessoas poderiam interpretar um time 100% masculino como uma mensagem de nossa parte.“, explicou o Eugene. Até aí tudo bem, certíssimo. Porém a coisa desanda na hora de explicar a decisão.

“Todo mundo concorda (que Andrômeda) é um ótimo personagem. Quanto mais desenvolvíamos (a ideia da mudança), mais víamos potencial. Uma ótima personagem com um ótimo visual. O conceito da Andrômeda não mudaria. Ela usa suas correntes para se defender, e defender seus amigos. Isso ela aprendeu com seu irmão protetor que a ensinou como lutar“. E, para terminar, ele postou a imagem de um personagem de BattleStar Galactica que teve o gênero mudado.

Vamos lá: eu não vejo problema algum em transformar um personagem principal de Cavaleiros do Zodíaco em mulher, se trata de um novo produto para um novo público, e não uma série para fã da original (que continua existindo com seus acertos e erros). Me incomoda apenas que seja o Shun.

Por que transformar justamente o personagem mais sensível? Por que não transformar personagens rasos e genéricos, como o Shiryu ou o Hyoga, em mulheres? Não podemos ter uma mulher forte ocupando a vaga ocupada por personagens tão semelhantes quanto Shiryu e Hyoga? Tem que ser uma mulher frágil que precisa ser sempre defendida? Por que não o Ikki então ser uma mulher, para termos uma mulher forte à altura do Seiya? E, uma pergunta bem importante: é tão inaceitável assim para a nova série, e para o século atual, a ideia de um homem que seja sensível?

Seria muito fácil para a habilidosa equipe de roteiristas (amparada pelo caminhão de dinheiro da Netflix) promover a Shina como protagonista. Ou então até mesmo a Saori (que já teve sua participação melhorada bastante no A Lenda do Santuário). Ou então criar uma personagem nova, levando em conta que se trata de uma releitura da série para o novo público! Lembrando que produções mais recentes, como Cavaleiros do Zodíaco Ômega e Saintia Shô têm sem qualquer problema personagens femininas em posição de destaque.

Por trás de toda essa ideia feminista de colocar representatividade para mulheres na série, a Netflix, a Toei e o roteirista demonstraram um caminhão de machismo. Para evitar que a maior personagem feminina fosse alguém que precisasse ser salva por um personagem masculino, eles transformaram em mulher justamente… o personagem que sempre precisa ser salvo por um personagem masculino. Foi uma mudança apenas para continuar a mesma representação atrasada de três décadas atrás, com a diferença que agora podem vender bonequinhos para mulheres.