Aleatoriedades

A Shonen Jump não é mais a mesma e o final de Demon Slayer comprova isso

O pessoal está acostumado a ver notícias tristes na editoria de política nacional, mas dessa vez a editoria de mangás trouxe uma tristeza: foi confirmado que se encerrará em maio o mangá Demon Slayer (ou Kimetsu no Yaiba, para os fãs que não aceitam títulos em inglês, por mais oficiais que sejam).

A série conseguiu bater recordes de vendas mesclando uma história carismática com os recursos de um anime produzido por estúdio especializado em sonegação de impostos, e o anúncio de um término só prova o quanto essa Shonen Jump que vemos não é mais aquela que conhecíamos. Talvez você seja um otaku novo e não saiba como funciona uma Shonen Jump, então vale uma explicação.

Cada edição da revista semanal vem com um capítulo de várias histórias, e o público envia por correio uma pesquisa sobre suas favoritas. Eles fazem uma análise desses dados e os mangás sem muito apelo do público são cortados sem dó para que encontrar novas histórias de sucesso. Essa rotatividade segue firme e forte até hoje.

No passado, a Shonen Jump era conhecida por espremer a criatividade de seus autores até os órgãos sobreviventes entregarem um emocionante arco de torneio, afinal quanto mais mangá desenhado mais lucro é revertido para a editora Shueisha. Akira Toriyama, de Dragon Ball, comeu o pão que o Majin Buu amassou: ele queria ter encerrado a história de Goku muitas vezes, mas era sempre obrigado a prosseguir. Como vingança pessoal, fazia os vilões de cada arco serem iguaizinhos aos editores carrascos que o faziam continuar trabalhando sem dó. Isso sem contar no sofrimento do Togashi e sua futura vingança ao estilo Ana Francisca de Chocolate com Pimenta, mas essa história fica para outro momento.

O medo da Shonen Jump sempre foi não ter um fenômeno entre seus diversos mangás. Ao final de Dragon Ball, o também sucesso Slam Dunk acabou e a editora entrou num desespero por não ter um título que rendesse a venda de milhões de exemplares por semana. A Shueisha se escorou em mangás menores como Samurai X e Yu-Gi-Oh até chegar o trio de sucesso dos anos 2000: One Piece, Naruto e Bleach. Estes sim tiveram vida longa e dezenas e mais dezenas de volumes para a editora lucrar bastante.

Atualmente a Shonen Jump tem seus sucessos, como One Piece (sim, ele ainda está aqui), My Hero Academia e The Promised Neverland, mas percebe-se que os mangás publicados na revista não são mais tão longos assim. Tudo bem, temos um Haikyuu com seus 40 e poucos volumes ou o One Piece com seus 100 volumes, há um bom tempo não vemos a Jump forçando seus sucessos até número de volumes gigantesco. Um mangá com o sucesso de Demon Slayer, capaz até desbancar as vendas de One Piece, será encerrado com pouco mais de vinte volumes. O que aconteceu com aquela velha editora capaz de arrancar lágrimas de Togashi?

Muitos debates sobre a duração dos mangás rolaram nas últimas décadas, inclusive dentro de mangás. Em Bakuman, o mangá sobre uma dupla de rapazes insuportáveis cujo sonho era ser publicado na Shonen Jump, eles só conseguiram o verdadeiro sucesso quando fizeram uma obra menos comercial, e na trama eles decidiram encerrar a história para não prejudicar o roteiro, mesmo com as boas vendas.

Eles tinham bagagem para contar sobre esse tema em Bakuman, porque o mangá anterior da dupla de autores, Death Note, poderia ter sido ainda mais redondinho se não tivesse se alongado demais. Mas talvez não tenha sido só uma indiretinha e Bakuman tenha adiantado uma nova percepção nos dirigentes da Shonen Jump. 

Há algum tempo escrevi uma matéria para o Omelete sobre o futuro de One Piece e conversei com a Beth Kodama da Panini para saber sobre quais séries poderiam herdar o sucesso de Luffy e companhia e, em vez de citar algum outro mangá, a editora-sênior trouxe uma visão pessoal bem mais pé no chão: “eu acredito que a tendência hoje são séries bem mais curtas. Acho que será difícil haver uma “lenda” como One Piece nos próximos anos”. Faz sentido.

Acredito ser bem mais vantajoso para a Shueisha ter diversos mangás com boas vendas do que somente um monopolizando a atenção do público. Inclusive licenciamento estrangeiro pode ser facilitado se a história tem menos volumes! E por dividir sua expectativa em vários títulos, ela sofre menos quando um deles acabar ou quando algum autor descambar a história para uma qualidade duvidosa. Com isso, os autores sentem menos pressão (mas só alivia um pouquinho, tá? Eles ainda sofrem chicotadas semanais nessa grande sessão de BDSM conhecida como “Publicar na Jump”) e podem tocar com seus mangás sem a necessidade do título durar 20 anos, permitindo um final pensado. No fim, é como se fosse um reposicionamento editorial da Shueisha.

Claro que esse ajuste virá com o tempo. Muitos reclamam que The Promised Neverland se perdeu após a fuga, e muitos criticam o desenrolar atual de Demon Slayer (algo que não sou capaz de opinar porque não me animei a acompanhar a série), mas acredito que chegaremos em um ponto no qual vários mangás terão uma vida de uns 15-20 volumes na Shonen Jump. Talvez essa venha a ser uma tendência nos mangás de outras editoras também, caso a Shueisha tenha êxito.

Quem agradece essa mudança, no fim, somos nós brasileiros. Com o dólar a quase seis reais e um volume de mangá custando o preço de quatro quilos de tomate italiano, ter uns mangás mais curtos pode ser muito bom para a gente.