Anime Friends · Eventos

Anime Friends sofre para acompanhar novo público que surgiu

Já havia se passado 20 minutos do horário previsto para a cerimônia de abertura do Anime Friends e o cenário ainda estava sendo construído no Palco Anime. Em meio à montagem de vários taikos, as apresentadoras Lu Himura e Chibi Martins se viram obrigadas a enrolar o público presente tal qual o episódio do avestruz em Naruto, e apostando na interação com os otakus a saída mais fácil foi realizar perguntas para a plateia interagir levantando a mão. As perguntas seguiam a linha DataFolha Otaku: “Quem aqui assiste One Piece?“, “Quem veio de fora de São Paulo?“, mas em um ponto elas fizeram a pergunta que definiria a minha percepção do evento. “Quem aqui está no Anime Friends pela primeira vez?“, e cerca de 50% do público levantou a mão.

O Anime Friends teve sua primeira edição em 2003, quando a empresa Yamato chegou com os dois pés na porta marcando seu novo evento no mesmo dia do Animecon, o maior e mais tradicional evento de animes no Brasil até então. Não lembro como descobri a existência do Anime Friends, e nem como eu decidi comparecer a esse evento no lugar do outro, mas eu estava lá vendo a “história sendo escrita“. Um diferencial do Anime Friends eram as atrações japonesas como os cantores Hironobu Kageyama e Akira Kushida, além do ator Hiroshi Watari, todos envolvidos com séries de anime e tokusatsu de muito carinho nostálgico.

O começo agressivo do Anime Friends foi o bastante para desidratar seu rival direto Animecon. Enquanto este tentava resgatar seu prestígio com o público, a Yamato ia promovendo cada vez mais eventos para atrair um público otaku maior. Mais artistas japoneses foram dando as caras por aqui, alguns MUITAS vezes. Hironobu Kageyama se tornou o Coldplay dos otakus, aparecendo no line-up de OITO edições diferentes do Anime Friends! Mesmo com poucas transformações em suas edições anuais, o Anime Friends precisou se renovar nos últimos anos para acompanhar os novos tempos. A CCXPzação dos eventos geek forçou o Friends a partir para uma linha mais “profissional”, e agora sob a tutela da Maru Division os eventos são realizados em espaços próprios para eventos como é o caso do Anhembi.

Por ter ido a mais edições do que gostaria do Anime Friends, não sinto mais o frescor nas atrações. Sei que vou encontrar apresentações de bandas brasileiras que já foram várias vezes, teremos os mesmos estandes de editoras operando da mesma forma e sempre teremos uma área paralela flertando com a sensação do momento (já foi o palco YouTubers, agora é o palco Kpop). Como já apontei em outra crítica aqui no Mais de Oito Mil, o Anime Friends parecia um evento estacionado no tempo e incapaz de correr atrás de uma possível mudança no público.

E, bem, essa mudança chegou.

Como parte de uma parceria com a Secretaria de Turismo de São Paulo, o primeiro dia (8) do Anime Friends disponibilizou 20 mil ingressos gratuitos para o público. Além disso, 5 mil alunos de escolas públicas tiveram a chance de visitar pela primeira vez um evento de anime, o que levou a uma mudança radical no público naquele dia. Circular pelo Anime Friends na sexta-feira era encontrar grupos de crianças uniformizadas circulando por um espaço incrível pela primeira vez, tirando fotos com cosplayers e aproveitando cada segundo daquele universo dos animes que eles amam.

Mesmo tendo se divertido, é possível falar que o evento não estava preparado para receber alunos de escola pública. Além das poucas atrações gratuitas no evento, afinal o Anime Friends seguiu a linha Ciro Bottini de “comprem, comprem, comprem“, faltou também ações promovidas pelos estandes e focadas no público de baixa renda que veio no dia gratuito: além de nenhuma editora ter feito um kit com mangás mais baratos para esse pessoal de escola pública, estandes como a Panini nem ao menos deram desconto no primeiro dia. No fim acabou sendo um passeio em que puderam mais “olhar” do que “apreciar”.

Mesmo nos dias pagos, era nítido que o Anime Friends foi descoberto por um público novo. Não existem dados sobre isso, mas é possível afirmar que aconteceu uma renovação do público otaku. Mesmo sem a força dada por uma exibição numa TV aberta, a facilidade no acesso de streamings e no próprio acesso à tecnologia fez com que séries como Naruto e My Hero Academia se espalhassem para pessoas mais novas. Como escrevi em uma matéria no Omelete, o público mais velho pode até não gostar dessa afirmação, mas Naruto hoje é uma franquia muito mais forte do que Os Cavaleiros do Zodíaco nos anos 1990.

O problema é que o excesso de tradição do Anime Friends esbarrou na ânsia desse público por produções mais novas. Exemplo: houve bastante destaque por parte da organização para o show Yu Yu 20, uma grande homenagem aos 20 anos da estreia do anime no Brasil (estreia essa ocorrida em 1997, 25 anos atrás). Por mais que seja muito legal para pessoas 35+ essa apresentação, eu incluso, reconheço que Yu Yu Hakusho é uma obra irrelevante do ponto de vista atual para os otakus. A adesão do público foi bem menor do que a de bandas que performaram músicas de Demon Slayer ou Jujutsu Kaisen no mesmo palco. O Anime Friends apresenta uma desproporção de atrações para nós velhos e os mais novos, e quem tá saindo na desvantagem são os novinhos.

Lembram quando falei do DataOtaku no começo da matéria? A apresentadora Lu Himura até perguntou quantas pessoas na plateia conheciam Yu Yu Hakusho, o que rendeu 5 mãos levantando. Chocada com o completo desconhecimento do detetive espiritual, Lu recomendou que o público assistisse ao anime por ser muito bom, e ainda deu um conselho: “vejam dublado“. Para ajudar na catequização dos jovens otakus, a apresentadora Chibi Martins usou a seguinte comparação para dizer que a dublagem de Yu Yu Hakusho é muito boa: “a dublagem é parecida com o que é feito hoje com One Piece e One-Punch Man“. Que momento incrível, passou-se tanto tempo que o antigo precursor das “dublagens com meme” agora é definido na comparação com coisas que seguiram sua própria linha! O pai se tornou o filho.

Sinto que o Anime Friends ainda não está totalmente pronto para os novos tempos, nem para o novo público. É preciso repensar as atrações para agradar esse pessoal mais novo, ou então não vai acontecer a esperada renovação de público. Urge também que se criem mais atrações gratuitas, além de espaços de descanso. Ninguém aguenta andar o dia todo, e por falta desses lugares para sentar os otakus vão tomando até mesmo os espaços instagramáveis das editoras: o mural de capas da JBC se tornou um sentódromo ocupado por otakus.

Vamos ver o que o Anime Friends 2023 vai fazer para atrair todas essas pessoas que foram ao Anime Friends pela primeira vez. Tenho ciência de que, embora as atrações no geral agradem minha faixa etária, eu não deveria ser foco. O evento é pra eles, não pra mim.