O meio de anime e mangá é um pequeno nicho, como já falei muito aqui no site, mas dentro desse universo da cultura geek japonesa existe um nicho ainda menor que não tem produtos oficiais lançados aos montes e precisa se contentar com reprises de programas de 30 anos atrás como se fosse a grande esperança de revitalizar o gênero. Estou falando do meio Tokusatsu no Brasil, muito diverso em matéria de produção e ainda mais diverso quando se trata de pensamento. E um podcast lançado recentemente foi o estopim de uma guerra virtual realizada sem explosões em pedreiras e sem roupas coladas, mas vou explicar tudo.
Na última sexta-feira (8) o pessoal do Henshin Rio realizou um podcast bem divertido sobre vilões de tokusatsu. Os membros do site discorreram sobre seus vilões favoritos, comentaram séries do passado e do presente e fizeram um programa bem normal. Porém, ao final do programa, eles puxaram um toque de realidade ao falar sobre vilões da vida real. Para que a mensagem ficasse clara até para o ouvinte com menos habilidade em realizar sinapses, a imagem de capa do podcast trazia o vilão McGaren de Jaspion vestido com a faixa presidencial.
Mas eles não esperavam a repercussão que viria por causa dessa montagem, afinal alguns consideraram um grande crime comparar o presidente ao vilão de Jaspion. Um jornalista veterano no meio tokuku, que recentemente chegou a compartilhar uma montagem comparando Jair ao protagonista de Dragon Ball Z cheia de mensagens de preconceito e ódio, declarou com todas as palavras que sentia desprezo por quem apoiasse esse podcast, alegando que o pessoal do Henshin Rio semeiam a divisão e o rancor.
Com os tokukus em chamas, voltou ao meio otaku geral uma discussão sobre “animes/mangás/tokusatsu não falam sobre política“, e até o JBox aproveitou a deixa para lançar um texto muito bom explicando que existe política em qualquer coisa. Sim, QUALQUER COISA.
(Inclusive sigam a nova conta do JBox no Twitter porque eles perderam a antiga)
Nos últimos dias, o meio tokusatsu foi dividido entre três lados distintos e acho que vale a pena listá-los:
Primeiro há os que entendem que qualquer produção audiovisual é política, afinal tudo é criado por pessoas com visões de mundo específicas e qualquer visão é política de alguma forma. Há os que discordam isso e ainda criticam qualquer pessoa que queria discutir política em uma produção audiovisual para crianças, e por fim tem o pessoal emcimadomurista que está ali só esperando a briga entre o Ultraman e o monstro da semana acabar pra descer do muro e tocar com sua vidinha sem se posicionar.
No meio dessa treta toda, o pessoal do Henshin Rio lançou hoje em suas redes sociais uma carta aberta justificando os motivos pelos quais é tão importante que todos se posicionem num momento como esse:
Por outro lado, o tradicional site Tokusatsu.com.br lançou uma série de tweets soltos (não usaram a função de agrupar tudo em um único fluxo, o que dificulta a leitura) em que posicionam o direito de não se posicionar para evitar os conflitos no meio tokusatsu (coloquei só alguns dos tweets, tá?):
Narrada toda a briga principal entre os representantes do meio tokuku, é a hora de colocar minha opiniãozinha sobre todo esse negócio.
Antes de mais nada, como já disse a matéria do JBox, qualquer produção audiovisual é política. Muita gente rejeita a ideia por pensar que política é somente aquela que envolve partidos, eleições etc, mas a política é algo muito mais amplo que isso. Quando uma série como Dragon Ball coloca Goku enfrentando um ditador que coloniza planetas e extermina populações mais fracas, isso é política. Quando em One Piece o Luffy participa de uma história em que há uma raça considerada inferior e retrata o preconceito dos outros, isso também é política. Quando um tokusatsu coloca uma mulher vestindo o uniforme vermelho, mesmo que provisoriamente, ou retrata uma organização com fins malignos, isso é POLÍTICO PARA CARALHO.
Mesmo sendo uma produção para crianças, não podemos ignorar o lado político de um tokusatsu. No passado, os contos de fadas dos irmãos Grimm eram usados para ensinar às crianças o que é certo e o que é errado, segundo os parâmetros da época, e até hoje os filmes da Disney seguem com a mesma função. Suas princesas obedecem os pais, respeitam as pessoas e lutam contra as injustiças, o que nada mais é do que passar uma mensagem educativa, e política, para as crianças. As mensagens passadas vão mudando de tempos em tempos, até porque a sociedade em si muda, e uma princesa como a Frozen fala muito mais com as crianças do nosso século do que uma Branca de Neve do século passado. Infelizmente não sou tão ligada no meio tokusatsu, mas tenho certeza que essas séries ensinam valores como trabalho em equipe, respeito aos mais velhos e noções básicas de moral.
(Claro, a mensagem sempre pode ser distorcida, tem jumento aí que interpreta que a Saori poderia representar o Bolsonaro ou que a Marinha de One Piece é uma alusão aos valores do PT (sim, já li isso), mas aí já é um problema a nível mundial de falta estímulo à interpretação de texto (ou preguiça mesmo).)
Obviamente ninguém no meio tokusatsu está exigindo que cada influenciador declare seu voto e/ou defenda cegamente seus candidatos, pra mim pouco importa se você preferia o Haddad, o Ciro, a Alckmin ou até o Cabo Daciolo. Porém, estamos vivendo em um momento muito diferente, e perigoso. O presidente Bolsonaro não é apenas o representante maior de todos os retrocessos possíveis para o país, tanto no campo moral quanto no campo político, mas ele também é o maior responsável pelas milhares de mortes por Covid-19 no país.
Enquanto outros governantes do mundo dão exemplo para a população e tentam tomar medidas para evitar mais mortes, o presidente ignora medidas de segurança, realiza manifestações antidemocráticas por puro ego e desobedece recomendações sanitárias por pirraça, afinal ele tinha uma necessidade fisiológica de andar de jet ski no dia em que batíamos recordes de mortes. Isso sem contar nas cortinas de fumaça, como liberar academias (!?) ou indicar que pretende lutar contra a ideologia de gênero (assunto também conhecido como: “delírio coletivo” por qualquer pessoa que pensa).
Tenho uma posição política bem conhecida, e convivo muito bem com pessoas de posição política diferente. Mesmo na minha casa eu e meu marido não concordamos em 100% nesse campo, mas tudo está bem porque ambos defendemos a democracia e aceitamos nossas diferenças. Porém o atual presidente está longe de ser uma simples “posição política”, pois ir contra a democracia deveria ser crime. E se já estávamos em crise, a forma como ele está lidando com a Covid-19 só mostra o quanto ele está mais próximo do mais debochado vilão de tokusatsu do que de alguém que luta contra as injustiças como qualquer guerreiro de roupa colada e armadura.
Talvez a opinião que melhor sintetize isso tudo venha desse tweet do Super Yoozen:
Você pode não concordar, mas esse site é totalmente político. Quando eu reclamo da objetificação das mulheres em um quadrinho, isso é político. Quando reclamo que o mercado editorial de mangás é pouco acessível, também é uma discussão política. E como site político, faço questão de me posicionar também contra qualquer atraso que venha por parte de um presidente sádico ou de qualquer valor conservador que promova injustiça, preconceito e segregação. E é isso.